segunda-feira, outubro 22, 2007

Os despojos do dia

O dia seguinte é sempre um dia estranho, como se acordássemos de um sonho bom, e nos víssemos forçados a ter de arranjar outro sonho para podermos continuar a fantasiar. Porém, há um pequeno truque que podemos usar: Fingimos que continua tudo igual, não equacionando sequer a hipótese de que se pode vir a ver o fim de algo, baixamos um véu branquinho e metemo-nos lá dentro, (o véu não o vemos, vejam os que estão do lado de fora) os sonhos também resultam com os outros, enganamo-nos se pensamos que só nós é que sonhamos!
Neste dia seguinte acho-me mais dispersa que nunca, disse "dispersa" sim, e mais expectante por um mundo cada vez mais incompreensível, genuíno e misterioso. Apetece-me descobri-lo a cada instante, a cada noite dormida, a cada manhã madrugadora que me deixa ver bandos de pássaros que se afastam em busca de ares mais quentes, e a cada tarde frescamente adormecida, exaustamente silenciada e fartamente metaforseada ao cair das primeiras estrelas da noite. É agora a hora da plenitude, da (in) consciência porque a tristeza não mais é do que uma escolha, dos que escolhem não saber o que fazer com as sensações que não sabem decifrar, e se não nos consciencializarmos dela, ela passa, como quem passa por um caminho, disseram algures que tudo nesta vida nos é eventualmente tirado, até a própria vida. E que faço eu? Entristeço-me? Não. Exijo outras saídas, e não me contento com resignações. Percebo agora o que é a alegria, por vê-la nos olhos dos outros, que a vida é uma dádiva ( não se sabe de quem, nem porquê) e não se pode recusar ofertas "é de mau tom" (diria a minha mãe). O momento é agora, hoje, não amanhã, nem depois. Cresço sim, "já vai", crescer custa, mas o que custa dá mais prazer, fortalece, engrandece, faz-nos gostar ainda mais daquilo que já adoramos, deixemos então a moleza para os "vencidos da vida" diria o nosso velho Eça, e caso erremos finjamos que os anjos olham na direcção oposta, se porventura voltarmos a errar e se nos detestarmos por cair na armadilha uma terceira vez e não termos a capacidade (ou será vontade?) e a coragem de admitir as nossas culpas, lembremo-nos que démos o nosso melhor noutros tempos, e que outras oportunidades surgirão, e em todas elas nos poderemos redimir. Estou preparada. Para viver, para morrer, para morrer depois de viver de preferência, pois assim não morreri nunca, serei terna eternamente no coração dos que me sentem, na pulsão dos que me amam, no vento que se perpetua, porque nós vamos mas o vento fica, no véu da noite que cobre todos os telhados de todas as casas dos nosso imaginário. Serei folha caída na calçada, chutada e pisada vezes sem conta, floco de neve que derrete nos galhos de cristal das amendoeiras, serei sombra da rocha alta do deserto, serei água que escorre por entre as canas dos canaviais (gosto destas duas palavras), serei som no bailarico da aldeia numa noite de Verão, serei corpo aninhado nos lençóis finos, brancos e brandos, serei sussurro ao nascer do dia, serei a riqueza de um pobre, o supérfluo de um rico.

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