terça-feira, agosto 24, 2010

A memória

É um corte abrupto na carne, bem no centro. São fios a rebentar por não conter a força do movimento de dentro para fora, arde uma luz que na sua própria aura consome o que resta do corpo dormente. Uma dor tão forte que dá ideia de que o coração quer abrir caminho pelas costas, não temos asas e agora não temos coração. O ar deixa de entrar. Fechamos os olhos e quando os voltam0s a abrir, está tudo igual, tudo menos o coração que permanece fora do corpo, e o ar que não entra por ele a dentro. Decidimos sair em busca do Sol e voltar para casa sabendo que não o encontrámos e sentir bem lá no fundo que não o vimos, porque ele saiu também à nossa procura. Assim se gera o apaziguamento doce e que se vai instalando calmo e feliz clamando por Liberdade, aí sabemos que temos de buscar o nosso próprio Sol. A memória permite acesso a coisas extraodinárias, relembra-nos do que queremos que fique e do que queremos que vá, que fiquem os mapas nos nossos corpos, as manchas nas nossas almas, os olhares tão cheios de vida, o gosto do gosto de outros, o resto que vá. A memória relembra-nos que há dor, que se olharmos para a ferida dói mais, ganha vida. A memória permite-nos abrir todas as portas que se fecharam, permite-nos correr até que nos faltem as forças até àquilo que queremos, a memória busca-nos quando nos esqueçemos dela. A memória é intruiguista e ávida de conquistas, e quase tão bela... Isso faz dela invejosa, a memória gostava de ser corpo como nós, sentir dor, alegria, prazer e toque humano, mas a memória não pode, é mera escrava do ar que envolve tempo que já foi.

quinta-feira, agosto 12, 2010

Deveres

Devemos correr atrás do que queremos. Devemos sempre prestar atenção ao que nos rodeia, a quem nos rodeia e a quem rodeamos. Devemos perdermo-nos para nos voltar a encontrar. Devemos deixar sempre a porta entreberta para que os fantasmas percebam que não os tememos. Devemos repetir sempre aquilo que já sabemos que o outro sabe. Devemos deixar que as oportunidades não escorram por entre os nossos dedos. Devemos partilhar o pouco que temos, para que o pouco se transforme em algo grandioso. Devemos morrer se queremos renascer, sem deixar morrer o calor que emana do nosso coração acorrentado à carne fria. Devemos beber do suór da Lua, cantar com as lágrimas secas do Sol, maravilharmo-nos com o odor das estrelas em noite escura e quente, devemos fechar os olhos para assim vermos toda a uma vida. Devemos contemplar o Vazio que sentimos engrandecer-se na derrota dos nossos actos. Devemos deixar o Vazio instalar-se, comprazer-se na nossa dor, deixá-lo mais um pouco. Devemos apelar às forças que já não acreditamos ter, alimentá-las do que de bom ainda possuimos, pegar na espada da Vitória e despedaçar o Vazio, deixá-lo ir com a brisa fresca da saudade e sair vitorioso no seu lugar. Devemos partir, se nunca abandonarmos o nosso lugar. Devemos ficar, se nunca tivermos vontade de partir.

domingo, agosto 01, 2010

A Vida parece ter vontade própria

Sabem quando vos apetece fugir, esquecer, relativizar, simplificar, esconder de tudo e todos com a máscara de um sorriso escavada na mais dura rocha na encosta da solidão? Sabem quando se tenta apagar da memória, mesmo que temporariamente, os bons momentos vividos, as alegrias partilhadas, os sorrisos cúmplices, os despertares felizes... e tentamos e tentamos, em vão... Parece que estamos a produzir uma imitação da vida, uma forma desesperada de não sentimento, de não desejo, de não cumprimento do dever, de esquecimento. Um rio que não desagua em mar algum... E eis que a Vida ganha força, mais uma vez, e parece ter vontade própria, esbofeteia-nos, diz que nos portámos mal, que estamos a fugir de algo que está dentro de nós e que ecoa numa sombra pesada. A sombra é nossa prisioneira, ou nós dela. E eis que a Vida ganha força, força como a do corpo enraivecido, força como a lágrima que escorre sem poder ser contida, força como a do vento em noite de tempestade, força como a da entrada de um corpo no outro num balanço terno, força como a das amarras do passado, força como a da sombra que rouba a luz do nosso dia, força como a do espaço da palavra escrita porque não a posso proferir de viva voz, força como a da alma que acredita que a sua carne se unirá a ela uma vez mais. E eis que a vida me faz deparar com isto...e eu lembro tudo outra vez...é a Vida. "Um beijo teu é como água salgada, quanto mais se bebe...mais sede se tem." Drummond de Andrade