quarta-feira, outubro 26, 2011

Olhemos sem medo

A carruagem teimava em chegar, na noite que estava mortinha por se evaporar no frio da madrugada. Os passos apressados descansaram no piso cor de tijolo, a mala pesava no ombro e o desejo de chegar ao quente da casa fazia exasperar.
Um olhar meio escondido por uma franja desequilibrada, fugia do meu.
Eu, vagueava pela estação para desentorpecer os músculos, andava de um lado para o outro calma e teimosamente, pensando que nestas horas os minutos parecem sempre uns caprichosos que comandados pelos ponteiros de um relógio, fazem batota e demoram mais que o normal, e o relógio nada faz. Péssimo patrão!
Nada de carruagem, mandriona que nem para chegares a horas prestas!
Nisto, volto a trocar o olhar com o outro , percebi porque fugia do meu... não eram iguais. O meu via através de dois olhos, o dela apenas por um. Uma deformação, um acidente, um motivo entre tantos que não conheço e possivelmente nunca irei conhecer.
A rapariga, tinha a minha estatura, possivelmente a minha idade e a cor dos cabelos igual à dos meus. O seu olhar era meigo, quase inocente, mas tinha força, a força de seguir em frente independentemente de tudo. Ela, sentada no chão, encostada a um painel publicitário com a mochila aninhada nas suas pernas, parecia fazer contas à vida, treinaria um ajuste de contas?
Ela, podia ser um símbolo, uma luz mais forte, um hino, um exemplo, mas não. É apenas uma rapariga a quem lhe falta um olho, e que mesmo assim enfrenta o mundo. Enfrenta-o porque viver é mais importante que tudo o resto, fá-lo por saber que algo assim pode tornar-se num pormenor apenas. Fá-lo porque pode acreditar que a nossa beleza vem de dentro e ecoa por esse mundo fora com uma luz muito própria, e nada tem a ver com o número de olhos que temos.
Ela, com apenas um olho é capaz de ver o mundo por inteiro, eu acredito nisso. Ela, ontem à noite fez com que os meus olhos enxergassem melhor. Ela seria capaz de abrir os olhos de todas as pessoas do mundo que desistiram de ver com os olhos do coração.

segunda-feira, outubro 03, 2011

Aguarela

Começa por ser uma mancha de cor, difusa à espera de contorno.
É criação no vazio, e atribuo-lhe significado quando está prestes a chegar ao seu fim.
A mancha é ausência de corpo, ausência no gesto e ausência de coragem.
A ponta dos dedos ajuda a espalhar a ideia que se quer margem de um mar calmo e espumoso, da mancha nasce um traço, do traço uma figura sem pretensão de ser imortal.
E do que se faz, nasce a inspiração. É nisso em que acredito.
Não nos deixemos guiar pelo vazio.
Nunca deixemos de percorrer um caminho por recear o lugar onde podemos ser levados.
Não abandonemos os fantasmas, porque vamos precisar deles se queremos ficar mais fortes.
Não os expulsar todos os vícios do nosso dia a dia.
Não nos limitemos a obedecer a regras, as regras nem sempre são claras.
Não deixemos de dizer o que sentimos, e principalmente o que não sentimos.
Não nos esqueçamos que a ousadia, permite que o nosso coração se inflame.
Não paremos de correr, quando estivermos perto de perder algo importante para nós.
Não nos esqueças de nos dar à Vida, e ao outro.
Não nos esqueçamos de colorir a vida com aguarelas que são cheiros, emoções, palpites, memórias, batalhas perdidas, barcos à vela, altares de flores, poemas sem palavras e gostos apurados.
Flutuemos no rio, sem deixar a vida passar no vazio.

sábado, outubro 01, 2011

Mudar

Implica rasgar com uma parte de nós que não se quer vergar. Implica olhar para dentro de nós e buscar pelo sentido das coisas, materializar medos, confrontar com a realidade e todas as consequências daí nascidas.
Fazêmo-lo sabendo que é algo precioso, mas que pode levar algum tempo. Fazêmo-lo cientes que aquilo que já temos não chega, e precisamos de força para encontrar mais.
Não julguemos os outros, olhemos por nós. Abracemos a Vida, conversemos com os fantasmas e façamos do nosso caminho uma bela história a recordar.
Quando algo não está no seu lugar, devemos perceber como o devolver ao espaço correcto. É como perceber que a flor que mais gostamos não consegue crescer no vaso que lhe destinámos, por mais sol, água e amor que lhe demos, a flor entristece-se a cada dia que passa. Mudemo-la de sítio e é vê-la a brotar e a esbanjar beleza e alegria aos nossos olhos.
Coragem. Coragem para dizer adeus, coragem para beijar o vento chegado de outra direcção, coragem para agradecer aos que nunca desistem de nós, coragem por acreditarem no nosso valor, coragem para admitir a ousadia em nós próprios, coragem para te olhar nos olhos e saber que nada mais será a mesma coisa.
Coragem nos sentidos, olhos que querem ver, boca para te sentir, dedos para te tocar nos cabelos e perceber que antes de o fazer, já eu sei o cheiro, o gosto, e o olhar que me viu ao amanhecer.