Há relativamente pouco tempo disse a um alguém que na presença das suas palavras me via como um vitral de uma igreja gótica, enquanto o via a ele como um simples vidro de uma janela, límpido e claro como água, eu escura como vinho...
E nisto pensei durante muito tempo...tempo que não volta, que se perdeu a cada instante que passou, e que já não pode ser vivido.
Ontem celebrei duzentas e dez mil, quatrocentas e quarenta horas de vida, são horas respiratórias, de renovação de tecidos, parte das quais não tenho consciência, memória tresloucada, vagabunda e inerte.
Não temam, porque aquilo de que se lembram mais não são que lembranças vagas, fumadas, parques de diversões subterrâneos e abandonados.
Ontem celebrei setenta e um mil e trezentos dias de vida, não são muitos dias, feitas as contas, nem sei bem porque é que me pus a contá-los..ah já me lembro, já não tinha nada para fazer, os amigos já tinham saído, o bolo já estava cortado e partilhado, as velas mordidas depois do desejo pedido, os papeís de embrulho improvisados, os restos espalhados pela casa, os meus restos imortais no chão da sala, à janela fria e uivante, o copo meio cheio de um líquido parecido com o sangue vomitado pelo conde Drácula.
Faz frio lá fora, é noite...o vento grita como se tivesse sido aprisionado numa ampulheta de vidro, e ninguèm para o salvar..talvez a chuva, a sua eterna noiva. O meu irmão de sangue dorme profundamente, o dia foi longo, mas eu não tenho sono, porque as palavras não me deixam adormecer, atordoam-me, compulsionam-me, escrevo letras nas linhas do caderno, não tenho luz, mas não me importo, nunca precisei de muita claridade para escrever, nunca precisei de muito para escrever, são só palavras que tintam as paredes do meu cérebro e ecoam de dentro de mim, claro que só eu as escuto, os outros deixaram-me de me olhar, ja passa da meia noite..a ilusão do aniversário acabou, perdeu-se a magia, é como a manhã de 26 de Dezembro..foi tudo uma miragem, a contagem decrescente para o próximo já se reiniciou.
Obrigada dos que se lembraram, obrigada aos que se esqueceram, obrigada aos que se lembraram e fizeram-se esquecer, obrigada pelo "Miracle", pelo amor incondicional, o gatinho no cartão, o beijinho doce e familiar.
Sou feliz e nem me apercebo o quanto.
Vou fazer de conta, gosto de fazer de conta, só tenho pena de me aperceber que não sou louca, porque se fosse era tudo tão menos complicado..."Vejam o que o vosso Deus me fez!", diz ele antes de morrer, cansado e ferido em frente a ela...ele um espelho, ela um vitral medieval, filhos de uma mesma religião, ele devoto por coração, ela a igreja alta e fechada.
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