domingo, agosto 26, 2007

Escrita por encomenda

O que e que e preferivel?
Escrever sobre o que sinto, ou antes sobre aquilo que me apetece sentir. Apercebi-me agora mesmo (ou talvez me tenha ja apercebido conseguindo apenas agora literarizar) de que sempre que me preparo para escrever sobre o que me arrepia os sentidos, deixo de sentir com efeito. Portanto quando me pedem para escrever, e eu nao tenho assunto para realizar esse desejo, remeto para momentos proximos que me envolvem num cortinado purpura e brilhante.
Escrevo agora sobre algo que, porque ja vivido e agora impossivel de materializar por palavras, e nao possuindo eu outra maneira de os fazer retornar a vida, remeto-os antes para uma nao vida. E como tentar apanhar a propria sombra numa manha de Verao por entre um caminho arido numa terra inospita, ou ainda melhor (ou pior, consoante a perspectiva) e como tentar ultrapassar a propria sombra...porque nao tentar sempre o impossivel?
Ha uns dias decepcionei-me e fi-lo de modo intencional, queria experimentar a sensacao, ja que todos o fazem porque nao eu, afinal que tenho eu a mais ou a menos do que todas as outras pessoas que conheco ou das quais faco apenas uma palida ideia. Porem so hoje escrevo sobre o assunto, porque so hoje o consigo fazer, emaranho entao palavras e ideias e sonhos camuflo-os a todos com pele de lobo para que em Novembro possa enfim carregar a minha espingarda e os cacar numa floresta fria, negra e densa nas primeiras horas de uma manha qualquer desse mesmo mes, e talvez ja na minha patria.
Ha uns dias depois de me decepcionar, tive na mesma noite uma forte indisposicao, preferi a morte do corpo a vida do espirito, se e que isso tambem nao e impossivel (quero sempre coisas inconciliaveis com a minha condicao), senti-me desintegrar, desfalecer tres a quatro vezes, percebi o que Platao definiu como "corpo e alma", pois ambas foram separadas nessa noite, afinal Platao refria-se a "quebras de tensao" induzidas por uma dor muito forte que quando sentida, alerta o organismo a ripostar. Ripostei de facto e dormi depois um sono calmo e abencoado.
A luz da recuperacao das forcas e dos sonhos que me identificam nao constando estes porem no cartao plastificado que me identifica, e das faculdades mentais que me sao possibilitadas pelo simples proposito da minha existencia, e agora que ja consigo escrever sobre o assunto, brilha mais fortemente a explicacao helenica para o que se me sucedeu (passo a expressao reflexiva e nem sempre acente entre os deocentes academicos): o corpo ressentiu-se do mal da alma.
Alma triste, corpo doente.
Nao e uma definicao, nao e uma filosofia barata, cara a tantas pessoas estudiosas, e apenas uma constatacao pessoal. De facto, a alma, tenha la ela a composicao astral que tiver, se se entristece, faz adoecer o corpo, lanca-o na miseria anatomica, congela parte do cerebro (a tal ponta do iceberg psicologico).
Felizmente a recuperacao revela-se melhor que o estado saudavel anterior, e mostra-nos que o nosso dever antes daquele onde impera a felicidade, e o de cuidarmos de nos, somos demasiadamente preciosos para nos entristecermos, demasiadamente fortes para sermos eliminados, somos eternamente pereciveis e eis que encontramos a formula da nossa beleza: somos fracos, e nao ha maior beleza do que a admissao da nossa fraqueza.
Se eu olhar agora mesmo pela minha janela, verei um tempo ameno, um ceu frondoso em nuvens que mereciam estar numa enorme taca de barros a serem batidas em castelo!
A decepcao ficou la muito atras, lado a lado com a doenca, nao me atrevo a dizer que vou lutar, lutar para que? E ignorar a guerra, fazer dela uma accao deploravel e inimitavel, e mimar o corpo e abrilhantar a alma...e beber muita agua!
Escrever nao faz nada, e de momento escrevo por encomenda, e gosto de o fazer, escrever e para mim como redigir uma acta de uma reuniao, as palavras situam-se no plano das intencoes e nao das accoes, as palavras nao fazem mudar o rumo da Historia (so se se tratar de tratados aldrabados como o mapa cor de rosa), as palavras nao fazem a verdade vir ao de cima, nao faz dos poetas pessoas virtuosas, nao faz dos politicos gente menos corrupta e nao faz do cinema uma arte mais bela, apenas uma arte mais pensada.
Escrever nao faz de Londres a cidade mais bela do mundo, as accoes essas sim mudam as coisas, dai eu escrever sobre o que sinto: nao magoa ninguem, ou pelo menos nao as altera no plano fisico, escrever sobre o facto de ter eu enfrentado a dor de uma doenca temporaria nao a torna mais ou menos dolorosa, apenas a partilha.
Escrevo agora porque reencontrei as faculdades que me permitem tal acto e essa a razao que basta, nao importando sequer sobre o que escrevo, no fundo nao escrvo sobre nada, escrevo apenas sobre algo que ja nao se pode reviver...e uma impossibilidade fisica, uma hipotese temporalmente inconcebivel, eu e a minha adoracao pelo impossivel.
Espero que gostes!

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