sexta-feira, dezembro 23, 2005

Eça é que é Eça ( by Halley)

Bem sei que felizmente o meu espaço é reservado a cinema, mas felizmente também tenho outra grande paixão...um senhor chamado Eça de Queirós, que escreveu há muito uma carta a alguém sobre o Natal. Acho incrível como este génio da literatura ( e por isso génio) mantém-se tão fresco, tão único, tão fascinante, tão verdadeiro e tão cruelmente lúcido. Vou transcrever parte da carta (que eu desejaria que tivesse sido escrita para mim), espero que o que eu vou fazer não se revele crime: " O Natal, a grande festa doméstica da Inglaterra(...)As desgraças públicas nunca impedem que os cidadãos jantem com apetite: e misérias da pátria, enquanto não são tangíveis e se não apresentam sob a forma flamejante de obuses rebentando numa cidade sitiada, não tirarão jamais o sono do patriota(...). O que estragou o Natal foi simplesmente a falta de neve(...), com um sol(...),deslizando timidamente sobre uma imensa peça de seda azul desbotada;(...)Um desapontamento nacional!(...) O assunto não varia na paisagem repetida: é sempre a mesma entrada de um parque, de aparência feudal, por vésperas de Natal, antes da meia- noite;(...) e a perder de vista tudo está coberto da neve caída, uma neve branca, fofa, alta, que faz nos campos um grande silêncio (...) felizes aqueles para quem essas portas difíceis se abrem.(...) - Merry Christmas! Merry Christamas! (...) Sob a chaminé estala e dança a grande fogueira do Natal: a sua luz rica faz parecer de ouro os cabelos louros, e de prata as barbas brancas.(...) E o piano não se cala nestas noites! É alguma velha canção inglesa, em que se fala de torneios e cavaleiros, ou uma dança da Escócia, que se baila com o gentil cerimonial do passado(...) as crianças(...) correm, cantam, riem vão a cada momento espreitar os ponteiros do relógio monumental, porque à meia noite chega o Santo Claus, (...) e que já a esa hora vem caminhando pela neve da estrada.(...) Amável santo Claus! Por um tempo tão frio, naquela idade, deixar a cabana de algodão que ele habita no País da Legenda, e vir por sobre ondas do mar e ramagens de florestas trazer a estes bebés o seu Natal!(...) O respeitável ancião, com o seu capuz até aos olhos, todo salpicado de neve, as mãos escondidas nas largas mangas de frade(...) Todas as crianças o querem abraçar, e ele não se recusa, porque é indulgente(...) as bochechas reluzem-lhe de escralates, as barbas, parecem crescer-lhe, e ali está bonacheirão, com a importância de um deus tutelar e amado, como a encarnação sacramental da alegria doméstica.(...) E as pobres crianças cantam as loas: e elas sabem que não serão esquecidas(...) porque Santo laus é um democrata ,e , se enche os seus alforges para os ricos, gosta sobretudo de os ver esvaziados nos regaço dos pobres. Tudo isto é encantador. Mas tire-se-lhe a neve, e fica tudo estragado. O Natal com uma lua cor de manteiga, a bater numa terra tépida de Primavera, torna-se apenas uma data no calendário.(...) Resta a consolação de que os pobres tiveram menos frio.(...) Nem eu sei realmente como a ceia faustosa possa saber bem - quando se considere que lá fora há quem regele(...). É justamente nestas horas de festa íntima, quando pára por um momento o furioso galope do nosso egoísmo - que a alma se abre a sentimentos melhores de fraternidade e de simpatia universal, e que a consciência da miséria em que se debatem tantos milhares de criaturas volta com uma margura maior(...) - para que se chegue à fácil conclusão que isto é um mundo abominável. Deste sentimento nascem algumas caridades de Natal, mas findas as consoadas, o egoísmo parte à desfilada, ninguém torna amis a pensar nos pobres...) e a miséria continua a gemer ao seu canto!(...) Jesus(...) ameaçou-nos, que teríamos sempre pobres entre nós. Tem-se procurado com revoluções sucessivas fazre falhar esta sinistra profecia - mas as revoluções passam e os pobres ficam.(...) Não é possível mudar. O esforço humano consegue, quando muito, converter um prolterariado faminto numa burguesia farta; mas surge logo das entranhas da sociedade um proletariado pior. Jesus tinha razão; haverá sempre pobres entre nós. Donde se prova que esta humanidade é o maior erro que jamais Deus cometeu.(...) Nos dois ou três primeiros mil anos de existência trepámos a uma certa altura de civilização, mas depois temos vindo rolando para baixo numa camabalhota secular.(...) Já não falo dos gregos e romanos: ninguém hoje tem bastante génio para compor um coro de Ésquilo ou uma página de Virgílio; como escultura e arquitectura somos grotescos; nenhum milionário é capaz de jantar com Lúculo; agitavam-se em atenas ou Roma mais ideais superiores num só dia do que nós invetámos num século,(...) e o escravo, essa miséria da antiguidade, não era mais desgraçado do que o proletário moderno.(...) Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inútil: afogá-la num dilúvio.(...) sem repetir a fatal indulgência que o levou a poupar Noé; se não fosse o esgoísmo senil desse patriarca borracho, que queria continuar a viver, para continuar a saber, nós hoje gozaríamos a felicidade inefável de não sermos..." ( De Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres) Um mágico Natal a todos os que lerem, dias felizes com efeito.

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