"Faz um ano" era eu uma pessoa diferente.
"Faz um ano" morava em Londres, ou pelo menos gostava da ideia de "morada" em Londres, fazia vida de residente, acordava cedo, calçava as pantufas e ia comprar o jornal e o pão... lá este tipo de coisas fazia sentido.
"Faz um ano" estava a conhecer uma nova amiga, trocávamos "emílios" extensos que criávamos para que o tempo passasse ( eu eu agora até que gostava que ele tivesse parado), percebíamos a cada frase que líamos que já nos devíamos ter conhecido noutra linha paralela qualquer, entendiamo-nos sem esforço algum, os vocábulos encontravam-se simplesmente nas sinédoques cerebrais, sabíamos que ainda tínhamos um ano para nos conhecer melhor...mal sabíamos que só íamos precisar de um mês, uma ida ao cinema na qual nos divertiríamos que nem duas perdidas por causa de uma incursão no fabuloso mundo da caça, eu de luva de cabedal e de máquina fotográfica em punho pronta a assustar qualquer perdiz desgovernada!
O ano passado por esta altura queria lá ficar, atrasei ao máximo a inscrição na faculdade, "tenho tanto tempo" pensei eu.
Volvido um ano, sei que a máquina que faz avançar os segundos não pára sequer para descansar, que o vento do Inverno instala-se sem por isso nos darmos conta, volvido um ano aprecio um final de tarde na praia, uma sesta debaixo de uma árvore, uma onda que me assusta e me surpreende de costas deitada na areia quente, um pêssego peludo e fresco acabado de lavar e que chega à boca frio, doce e molhado, um bloco de notas abandonado ao pé da cesta de verga, aprecio o "não aguentar ficar muito tempo deitada na toalha", um ano volvido sei que só vivemos enquanto o coração bate.
Volvido um ano, percebo que tudo isto faz parte.
As idas e os regressos cansados no lugar do pendura com a cabeça encostada à janela aberta e os cabelos a esvoaçar à velocidade do carro, as consultas, os exames, os diagnósticos, as ausências, o cheiro a desinfectante, as batas brancas, "as boas notícias", os aventais azuis, a marquesa (eu tinha de ter alguma pompa real no meio disto tudo), a palavra "biopsia", a palavra "quimio" (ainda que tímida) assustadora e sem possibilidade de verbalizar, a aceitação, a alegria das conquistas, os suspiros pelas derrotas, o telefonema da médica que disse que só o faria se os exames acusassem algo de errado e perigoso, o telefone que tocou, o soco na barriga: a voz doce e simpática do outro lado a dizer "é só para saber como vai a Leila!", as palavras reconfortantes, a necessidade de solidão para me encontrar comigo mesma... só para não me perder, as noites mal dormidas, os livros que ficaram por ler, os filmes por ver, a falta de objectivos, porque o objectivo é viver, os sorrisos nas fotos para que não façam muitas perguntas, a descaracterização da persona grata, a dificuldade de expressão, os planos adiados, o "não atender" por não saber o que dizer, o desconhecimento das causas, o deixar de pensar "não é justo", a necessidade de fazer birras porque achava mesmo que aquilo era azul esverdeado e não verde azulado, a desconcentração, faz tudo parte de um processo de aprendizagem.
E o resto, é cicatrizar uma ferida ausente para os demais, é sorrir sempre porque se sorrirmos ninguém nos faz perguntas dificeis, é pensar no futuro mesmo sabendo que nada posso fazer para alterar o passado, é acreditar que a paz de alma começa dentro de mim. O resto é acreditar que não tenho nada, que já passou, que já posso aprender a nadar, que tenho de ter cuidado com os doces, que com anemia não se brinca, que "a parvinha" aprendeu a lição da mana mais velha, que o truque é não ter medo, que esse "come por dentro", e que só me falta perceber do que é que gosto, se é que já não sei de antemão.
O resto é saber que o dinheiro não importa e acaba até por estorvar porque fico sem vontade de o gastar, que gosto de casacos com padrão inglês, Weekend da Burberrys, óculos Dior, e carteira Furla, e que isso não faz de mim uma má ou boa pessoa, faz apenas a pessoa que sou, que gosta do material (como me disse alguém numa mesa de restaurante) porque esse me permite chegar ao meu espiritual.
Não não sou católica, sou mesmo caótica. Não arrumo o quarto faz dois meses, não encontro o meu diário que me foi oferecido pela amiga que fiz estava eu "de férias em casa", ainda não comecei a tomar as vitaminas, ainda não recomecei o tratamento, apetece-me ir a Veneza antes que se afunde, tenho de esvaziar a carteira que está cheia de papéis do multibanco.
Apetece-me ir à praia porque me negaram esse direito.
Apetece-me comer gelado de baunilha regado a molho de chocolate porque me proibiram.
Apetece-me andar muito porque me aconselharam a não o fazer para "que cicatrize mais depressa".
Apetece-me voltar a sítios os quais vislumbrei muito efemeramente, porque estava tão tão feliz, e quando assim estou esqueço-me de certas coisas.
Apetece-me ter coragem para lá não querer voltar.
Apetece-me abandonar uma ideia.
Apetece-me querer tudo porque só o Tudo parece ser impossível de alcançar.
Apetece-me desaparecer por aqui e por ali, aparecer ali e além.
Apetece-me ser eterna e estender esse meu estado aos momentos alegres.
Apetece-me que a minha mãe chegue nos próximos 5 minutos porque me ficou de trazer um gelado do café aqui ao lado de casa.
Enfim apetece-me
...e nem sinal da minha mãe e do dito gelado!
(a foto??...bem continuo a julgar-me uma princesa)
4 comentários:
a mim apetecia-me que este post nunca mais acabasse...
Beijinho ;)
Não querendo de maneira nenhuma minimizar a profundidade e a beleza da tua prosa, será que podemos tirar a conclusão... "I'm back... with a vengeance!"? :)
Já dei uma vista de olhos pelo blog e gostei muito do que li. Transpões muito bem sentimentos para 'o papel', por assim dizer, e a tua escrita cativa quem a lê. Muitos parabéns! Continua o bom trabalho. Quer dizer, neste caso deve ser um prazer e não um trabalho... De qualquer maneira, continua. ;)
Ah sim! Gostei da piada da marquesa! :D
nao tenho foto mas sou muita giro, tu sabes disso. Gostei de a rever, está muito bonita, "estar bonita", para si é um estado permanente.
Não desapareças, mas vai se tens de ir para te encontrares de novo! sabes minha menina terna nem todos são como tu, tens aquela luz, és um ser particular, e por mais que tentes não sabes que iluminas a vida de todos os que te rodeiam.
isto é pequeno demais para gente como tu
Adoro-te
To
Ola
Vamos la ver quem manda aqui .. sem poesia vamos utlizar um cliche que sabes que a mana gosta de cliches , tambem gosto de canapes mas isso agora nao interessa o que queria dizer é " Faça la o favor de ser feliz " ..ahaha
beijos da mana
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