quarta-feira, outubro 26, 2005

Alice

Alice angustia, revolta, sufoca, entristece, diminui-nos. Faz-nos perceber porque é que as pessoas são mais do que pessoas, são muito mais do que isso, são parte de nós e se desaparecem, então também nós desaparecemos. É sem dúvida uma experiência dolorosa assistir a Alice, muitos daqueles que já se confrontaram com a dor da perda de um filho cruzam-se com todos nós todos os dias, no metro, no comboio, nas 'casas de sandes', na rua. Nunca percebemos a sua dor simplesmente porque não vemos essas pessoas, limitamo-nos a olhar e a passar porque temos mais com o que nos preocupar...daí a nossa surpresa quando uma criança nos olha e nos sorri aparentemente do nada, mas a criança sabes porque é que o faz, nós é que já perdemos essa delicadeza pura. A perda de um filho é a maior dor que alguém pode sentir (não duvido), pior do que isso é a incerteza... porque perante a morte nada mais podemos fazer a não ser recordarmo-nos todos os dias dessa pessoa mantendo-a viva aos nossos olhos, mas não saber se ela 'partiu', se ela respira, se ela ainda sorri, dor maior não deveria ser humanamente suportável. Alice fala sobre a ausência, a perda - de si mesmo- o silêncio, os tempos mortos, as acções mecânicas inatas do ser obsecado(se me é permitido falar nestes termos), as tentativas, as desilusões, as frustrações, o medo da verdade, a esperança no reencontro, e sobre o inverno desolador que reina os nossos corações. Desde o início sabemos qual o desfecho do filme, infelizmente são poucos os casos que terminam com um sorriso na cara daqueles que procuram incessantemente por algo que ninguém (nem Deus- para os crentes) deveria ter o poder de os privar. Alice desapareceu a 17 de abril de 2003. Tinha cabelos encaracolados castanhos claros (como os do pai) e vestia a bata do infantário por debaixo de um casaco azul.Desde esse dia nunca mais foi vista. Inês Batarda é simplesmente fantástica, ela é a mãe da sua menina qua passa os seus dias num estado de completa apatia agora que perdeu qualquer vontade de viver ou amar. Nuno Lopes é o pai de Alice que é também um actor, que através da sua profissão escapa ao drama da sua vida, sendo o palco o seu refúgio e local onde recupera as suas forças para mais um dia de rotina na sua busca solitária na grande Lisboa, com a juda de pessoas que instalam as suas camaras em pontos estratégicos da cidade, 'fazendo o que podem' na busca, de forma relutante ou até despreocupada...é que eles não acreditam. A banda sonora acompanha a obra de forma magestral, cada nota de piano é como que um passo deste desolado pai, ou um suspiro da mãe, ou um baixar de olhos de um comum peão...O azul chamou-me a atenção, é que além de tudo isto Alice é ainda ums obra visualmente fascinante, como se a qualquer momento o écran pudesse ser invadido por uma queda de água apaziguadora, que nunca chega. O azul predomina. Os ingleses dizem estar 'blue' quando estão tristes. A água ao reflectir o céu torna-se azul. A multidão é cinzenta, ou será azul? O casaco de Alice era azul. Vi Alice não como um simples filme, mas quase como se estivesse a ler um poema, ou melhor um hino cantado a todos aqueles que sofrem em silêncio por causa de um acto tão cruel como levar algo que não é seu, sinto que as minhas palavras não chegam para explicar o que sinto, é que sinceramente não consigo perceber. Só sei que a vida deixa de fazer sentido. O mundo deixa de rodar. A incerteza apodera-se do nosso espírito...espiríto??Acredito que a dor ultrapassa essa barreira, dilacera a carne,faz o sangue deixa de correr. Ficam palavras por dizer, o amor incindicional que une as pessoas não consegue cortar o véu negro da dor, que ele é tão bem costurado que faz a menina Alice perder-se num outro mundo(não o das maravilhas), regido pelo vazio,pelo silêncio... Mas o Amor é só um sentimento, não traz ninguém de volta e a vida continua. Alice agora é passado para os outros, e constante para aqueles que amarão sempre a menina dos seus olhos. As duas cenas finais do filme decidem-no( se é que ele não estava já decidido desde o primeiro segundo...), a escolha é feita: procurar Alice ou viver? Para Lewis Carrol a fonte secou, mas a vida, essa subsiste, Alice também.

2 comentários:

Santiago de Sousa disse...

Confesso que foi com prazer e emoção que li a tua "review". Vou estar atento ao blog.

Até breve.

Nuno Vasco disse...

Com um filme de tamanha qualidade , reconhecida ate no estrangeiro , pergunto-me como e que os orgaos responsaveis decidiram eleger o filme , Noite Escura , como possivel candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro ?? Nao querendo menosprezar o filme de Joao Canijo ( se nao me enganei no nome ! ) , mas acho que um filme como Alice , com um tema de cariz universal e ainda por cima corajoso , pois mostra uma cidade de Lisboa que na maior parte das vezes , no nosso movimentado dia a dia , nos escapa . Ainda ha esperanca para o cinema portugues . Ha e que saber aproveita-la !