"Mano quero ver passarinhos!!"
Dizia ela com a sua voz inocentemente imperativa, contestatária, doce e irrepreensível, teimosa e inesgotável.
O lume do Céu rasgava os panos do Tempo, a viagem leva anos a percorrer, talvez quinze, talvez catorze, pedindo às Parcas para fazer um recuo imaginário, é recorada a descida leve da Primavera daquele ano...talvez o de 1991, talvez o de 1992, o pólen invisível pairava sobre a menina, e o alpendre vazio.
Um pouco mais longe, água cristalizada consolava as amendoeiras mais próximas, pareciam diamantes finamente delapidados à espera que ela crescesse e os usasse orgulhosamnete nas suas orelhas finas e escondidas pelos seus cabelos cor de ébano, furiosos tentáculos que reinavam na sua cabeça e que só ela conseguia domar.
"Vamos pôr pão molhado no alpendre!"
Disse ele, numa tentativa de acalmar a menina, de fazer sorrir os seus olhos,de acalmar se possível os furiosos, enfim numa tentativa de satisfazer a vontade dela e sua (secretamente sentida). O pão, esse manjar, colocaria um fim à espera maldita, um início de algo maior.
Amanheceu frescamente. Ela acordou, despertou insatisfeita como sempre, os seus pés finos tocaram o ladrilho frio cortando como agulhas a base do seu corpo alado, frágil, macio...obrigando a tocá-lo minimamente, fingiu ser bailarina nessa manhã.
Ele disse, "Agora, agora!"
Ela sorriu como só uma criança o sabe fazer.
Quanta emoção aquele passarinho lhe proporcionou, aquele ser tão ou mais frágil que ela, dádiva dos Céus, porque só a ele pertence, maravilha natural, pequena e mole aninhada na palma de uma mão protectora e contente. Comendo o pão comprado no dia anterior na padaria da D.Emíla.
Devolvidos os anos às Parcas, (porque só a elas pertence), numa manhã de Primavera como a de hoje, a menina de outrora olhou o alpendre e nada do que era continua a ser, não há passarinho, não há amendoeira, há o alpendre nú...e eis que de repente, como se algo maior e mais forte que ela percebesse a sua perda, o Ser surge, o alpendre foi coberto momentanemente. Que felicidade, que inesgotável alegria ela teve naqueles segundos breves e fugidios, tantos e tão poucos enquanto o passarinho lá ficou, voou para outro alpendre, foi beijar os olhos de outras meninas como ela!
Horas depois, ela procurou o mano e disse:
"Esteve um passarinho tão bonito no nosso alpendre.", disse ela hoje já com uma voz firme, mas ainda adocicada como outrora.
Ele: "Temos de pôr pão molhado!"
Ela sorriu, virou-lhe as costas e silenciosamente alegrou-se. "Ele lembrou-se." Tudo faz sentido, aquilo que senti não foi uma ilusão, a vida faz sempre sentido, seja para quem for. O passarinho guiar-nos-à no sentido certo, eles sabem sempre o caminho em direcção ao nosso alpendre!
Estou feliz.
Já não sou criança, nem a menina de outrora mas continuo a gostar de passarinnhos.