“A mais profunda queda no Inferno provém da inocência”,
Choderlot de Laclos escreveu algo assim perto do final do século XVIII num dos
seus textos teatrais que deu origem a um filme dos anos 90.
Uma peça de teatro torna-se num excelente ponto de partida
para discorrer sobre Skyfall, o novo filme da saga 007, que se encontra num
mundo que se entretém entre o passado e o futuro sem necessidade de cortina
entre actores e público. Teria Sam Mendes isto em mente quando aceitou ser o
novo realizador de uma obra inserida num universo tão preciso quanto comercial?
Creio que sim. Sam Mendes apostou e ganhou. Sam Mendes, um homem do Teatro, mostrou
que teatro e cinema são duas artes com tantos pontos de contacto quantos
aqueles que quisermos ver. A saga 007 ganha agora novos contornos, através de
um “episódio” mais real, mais verosímil e repleto de contradições o transformam
numa obra ímpar e simbólica: a que comemora dos 50 anos deste herói.
Para enriquecer esta teia, Sam Mendes rodeou-se de actores
também oriundos dos palcos, uma opção que lhe conferiu não só um elenco repleto
de poderosas interpretações como elevou ainda a fasquia da saga para as
próximas rendições de Bond. Mas Skyfall não vive apenas da dedicação destes
mesmo actores às suas personagens, ganhando vida e magia com a recuperação de uma
personagem adicional esquecida e tão mal tratada anteriormente: Londres. O
ambiente indisfarçavel das ruas londrinas torna-se palco e personagem de cenas
de acção em grande escala e serve como uma luva a M e 007, fazendo-nos
questionar o porquê da omissão constante deste palco privilegiado nestes
últimos 50 anos.
A somar aos ingredientes já descritos, Skyfall respira muito
da estrutura dramática e profundidade de caracterização de Silva, o vilão
criado pelo fantástico Javier Bardem, cuja interpretação arrebata o espectador,
respeitando-o e temendo-o simultaneamente . Confesso que o meu coração ainda
palpita por Le Chifre, o vilão de
Casino Royale, pelo seu minimalismo e contenção que desembocam numa cena de
tortura masculinamente perturbante que se inscreve por direito próprio na
história da saga, mas Silva (uma personagem criada por Ian Flemming) é
poderosíssimo e um concorrrente de peso aos vilões mais emblemáticos. Não só
Silva possuiu um desejo de vingança calculada ao pormenor, incrivelmente frio e
metódico mas simultaneamente emocional e freudiano, de fazer M. confrontar-se
com escolhas passadas como consegue conduzir esta luta num cruzamento constante
entre a loucura real e a fingida, deambulando entre o sofrimento e a raiva
opressiva, num misto de Hamlet e Hannibal Lecter.
Já Daniel Craig volta a interpretar um Bond “cool”, mais
velho e bruto mas também mais refinado do que nas anteriores aparições, que,
pela primeira vez, deixa revelar as suas fraquezas e traumas, tornando-o mais
íntimo do espectador e, portanto, simultaneamente mais frágil e admiravelmente
forte. Craig torna-se num dos
James Bond mais emblemáticos de toda a saga, revelando-se um homem da era
moderna mas que não compromete nem deixa de ser reger por sólidos modelos e
valores clássicos, num retrato evolutivo e de construção de personagem
fenomenal ao longo dos últimos três filmes. Este é, a meu ver, um dos pontos
mais fortes de Skyfall, a “intromissão” das interpretações no nosso mundo, a
cadência dos seus sentimentos e o confronto com a realidade revelada através
dos seus erros, dos seus traumas e das suas próprias falhas humanas que nascem
de momentos que temos a especial honra de presenciarmos.
Novamente entre o Teatro e o Cinema e traçando-se um paralelo
entre a arte do passado e a arte moderna, é possível assistir ainda à grande
inspiração cinematográfica: The Dark Knight ,de Christopher Nolan. Skyfall bebe
deste universo, do seu realismo e até tem alguns pontos em comum, como a
majestosa mansão em que se passam os últimos 45 minutos do filme, onde se ouvem
ecos de Hamlet ou até se vêem vestígios de um Bruce Wayne em mutação. Tal como
o vigilante das trevas, também James Bond “vigia” Londres em topos de edifícios,
também é atormentado por um passado que o marcou e o tornou naquilo que é, também ele tem um “criado” que faz a
ponte com o seu passado e que o recorda da sua verdadeira natureza, numa bonita
interpretação de Albert Finney que se revela como o coração do filme. Mas, o
ponto crucial desta ponte entre as duas obras, passa pela simbologia da gruta e
da reclusão como modo de enfrentar os fantasmas e as perdas: Bruce e James
deitaram-se crianças numa gruta e acordaram homens, encontrando a sua energia
na escuridão e fazendo dela força.
Sam Mendes faz da subtileza a sua melhor arma para não deixar
que este seja apenas mais um filme de James Bond, servindo-se deste atributo
para revelar todos os elementos próprios deste sofisticado universo, seja pela
alusão não declarada às marcas que desde sempre acompanharam este herói, seja
pela presença das Bond girls – aqui meros pontos de contacto com a
masculinidade do herói - mas que até neste filme se tornam um pouco mais nisso,
no teste de Silva a Bond na ilha abandonada. A dicotomia entre passado vs
futuro, contrapondo sempre o “old fashion way” com o desapego e individualismo
dos nossos tempos, saindo (quase) sempre o passado a ganhar, momento espelhado
magistralmente pelo “desaparecimento” de Silva. Nitidamente a escolha musical
para genérico do filme através de Adele remete exactamente para este ponto
tentando recuperar o toque feminino e sensual do passado de Bond, o qual havia
sido abandonado nas últimas interpretações de Chris Cornell ou Alicia Keys em
dueto com Jack White.
Do ponto de vista cénico, é de salientar ainda a fantástica
cena de luta em Xangai, mais uma vez perfeitamente encenada e coreografada, qual
peça de teatro, bem como o regresso de Moneypenny e Q., que encerram toda uma promessa
do regresso do herói a par e passo com uma nova era do MI6 num mundo também ele
em rápida mutação geo-política.
Curiosamente, Skyfall não é o título de nenhuma obra de Ian
Flemming, trazendo acorrentado a si o desejo de modernidade, de realismo que
este herói já estava a precisar. Skyfall faz com que este mundo seja
transportado para o mundo real governado por burocratas e decisões centralizadas
e afastadas do terreno, fazendo-nos submergir no jogo de intrigas do mundo dos
agentes secretos ao serviço de Sua Majestade como guardiões do templo modernos,
e respondendo às exigências de um público que, mesmo amante de todo o ambiente literário
e cinematográfico deste herói, pedia já um tratamento mais digno e real (mais
clássico e menos moderno?) de todo o universo.