quarta-feira, novembro 23, 2011

A menina que eu era

A menina escrevia em folhas. Desenhava letras, coloria flores e colhia sonhos pintados a caneta de feltro.
Fazia, frio, entrávamos no mês de Novembro, esse mês acalentado, mais frio que fresco, mais escuro que o cinzento do lápis de carvão.
A menina era eu, se estava de saia, eram às pregas, e os collants vermelhas deviam estar cobertos de borbotos, se estava de calças então eram azuis e de bombazine.
A menina que eu era, a menina da mamã. A menina gostava era de ir para o trabalho da mãe, até dispensava as aulas se preciso, estudar para quê? Se o que faço lá, posso fazer onde quiser, e a minha mãe está aqui, não está na sala de aulas do Pinheirinho. Birra assumida. Amuo dos grandes.
Eu gostava de estar com a minha mãe, ajudava-a se preciso, mas ela nunca me deixava fazer nada. Novo beicinho. A menina que eu era desenhava naquela altura em que o dia se desmancha em pó das estrelas, e a minha mãe sentou-se na sua cadeira, e eu fiquei no colo dela. Orgulhosa. A minha mãe trazia uma romã com ela, era meio alaranjada, grande e pesada. Com uma faca começou a desfazê-la, cortando-a minuciosamente, e eu observava curiosa para saber o que ia sair dali de dentro. Quando a casca se começou a soltar, vi a sua verdadeira riqueza, aquele vermelho rubro, aquele vermelho meio cristalino, aqueles gomos pequenos de luz, amor e doçura. A menina ficou encantada, e provou. Ao provar, gostou, mas a mãe gostava mais e a menina preferia vê-la deliciada com aquela dádiva da estação.
A menina que eu era, ao colo da mamã, perguntou como era a casa onde a mãe vivia quando era pequenina. A mãe não querendo verbalizar porque isso talvez a afastasse da memória que tinha guardada na cabeça, preferiu desenhá-la com o coração, e usou a folha da menina. A menina lembra-se disto, e lembra-se da mãe explicar que a entrada de casa era feita de pedrinhas muito pequeninas. Mas não tenho o desenho, e ainda hoje não gosto do fruto, mas gosto muito da minha mãe e de a ver comer essas mesmas romãs.

quinta-feira, novembro 17, 2011

Como ferro ardido

Desejou o destino que nos desejássemos,
envoltos numa brisa de cor feita de luz,
antes do quente da língua e do arrepio na pele.
Antes da tarde cair em noite,
e o livro caído no banco de trás do carro
pular das tuas, para as minhas mãos.
Foi há um ano.
Lembras-te?
Há um ano, ou tantos mais.
Não me lembro bem do que era antes de te saber por perto
Não me lembro bem do que sentia falta, porque agora só sinto a tua.
Apenas sei que nos conhecemos no dia em que os nossos corações
ganharam força suficiente para bater um pelo outro.
Como se já nos beijássemos em sonhos.
Como se já tivéssemos contracenado no mesmo palco.
Como se já soubéssemos tudo o que queríamos dizer
UM AO OUTRO.
A cena que recriamos hoje, mais não é que um quadro de amor.
A cena que recriamos hoje, nada tem de teatral.
A cena que recriamos hoje é sentarmo-nos no meio dos outros,
mais sós, e apaixonados que nunca.
Trezentos e sessenta e cinco dias.
O tempo medido nas horas, relógio que bate ao compasso do coração.
Trezentos e sessenta e cinco dias.
Juntos, abraçados, sorridentes, esperançosos, sonhadores.
Cativos, maravilhados, atentos, viajantes, amantes.
Sedentos, faladores, compreensivos, e felizes.
Tanto que construímos, tanto para te dizer, e em paz
por saber que tenho toda uma vida para o fazer.
Trezentos e sessenta e cinco dias em crescendo.
Tal como um poema que trata de nos arrebatar
nos seus últimos versos, e nos faz beber o mundo de um trago só.
Trezentos e sessenta e cinco dias de plenitude.
No meu coração e na minha alma.
Uma paz que sinto todas as noites no entrelaçar dos nossos braços.
Trezentos e sessenta e cinco dias,
em que voei contigo estrada fora, aninhada nas asas
fortes e corajosas dos nossos sentimentos.
Trezentos e sessenta e cinco dias que me completam,
me fazem acreditar no divino e afirmar que:
A perfeição existe quando nos deitamos e os nossos
corpos, sem querer, se moldam como ferro ardido.
Por tudo o que existe, e por tudo o que falta escrever.

sábado, novembro 12, 2011

Passagem de ano

Por norma, realiza-se a 31 de Dezembro de todos os anos.
Por norma, sim. Na nossa memória, o caso é diferente.
Não sou particularmente fã da celebração, e talvez por isso mesmo, esteja a escrever sobre a mesma a 12 de Novembro. Porém, não relembro uma passagem de ano qualquer. Relembro uma a cujo ano não sei precisar.
Apenas sei que era criança, que fazia frio, que o dia terminava cedo e que estávamos no último dia de Dezembro.
Eu tinha andado de carro com o meu pai, e ao final do dia tinhamos de passar num supermercado para levar coisas para casa que a mamã tinha pedido.
Recordo-me do supermercado cheio e eu estava feliz por ver a multidão confusa, e na azáfama dos últimos preparativos. Compravam bolos e salgados, mantimentos para regimentos talvez. Eu imaginava que todos estavam a preparar grandes festas, e por isso precisavam de comprar metade das coisas que se vendiam por ali.
Acho que o meu pai apenas comprou pão e mais qualquer coisa... talvez bebidas.
Recordo-me de estar ansiosa por algo que ia acontecer, mas não saber bem o quê.
Estávamos a chegar a Casa, e eu ia agarrada a agendas do ano que batia à porta, daquelas dadas por pessoas que trabalham em empresas e assim fazem alguma promoção ao seu ofício. Na altura usavam-se agendas e apontavam-se os números de telefone de casa das pessoas.
Não me lembro do caminho para casa, apenas me recordo que demorou mais que o normal e recordo da chegada. Havia pessoas à porta do café do «Pinheirinho».
Logo depois cheguei a Casa, e cheirava a óleo de cedro, dei as agendas à minha mãe, e ela disse-me que ficasse com uma, mesmo não sabendo bem o que escrever por lá. Eu fiquei muito contente. Lembro-me da televisão estar sintonizada na RTP e dava um programa de humor. É disso que me lembro. Nada mais.

quinta-feira, novembro 03, 2011

Outono

Outono é sabor a vento.
Outono é o lamento do Verão, a véspera do Inverno.
Outono é manta no sofá, e manta sobre a cama feita.
Outono são gatos enrolados sobre si mesmos, de olhos fechados, a sonhar com os seus donos.
Outono é cheiro a café, a castanhas, a lenha, e a terra molhada.
Outono são dias mais curtos, e noites mais frias.
Outono são gotículas deslizando na janela lá de Casa.
Outono são promessas para os meses seguintes.
Outono é preguiça pela manhã, vigília de madrugada.
Outono são collants, botas, gorros e mais tempo para escrever.
Outono somos nós no meio da rua a caminhar contra o vento.
Outono são músicas calmas, livros a meio, e bolachinhas numa lata.
Outono é a brisa que teima em regelar-nos o nariz.
Outono és tu e eu, roeados pelo mundo que criamos.
Outono é a tua mão na minha, a minha na tua num abraço profundo e silencioso.
Outono é cama fria, aquecida pelo sono.
Outono é uma dança que teima em não terminar, e persiste até a regresso das andorinhas.