É tão raro ir ao cinema com grandes expectativas e sair de lá com o peito cheio de contentamento, que demorei alguns dias a conseguir escrever algumas palavras sobre obra de Michel Hazanavicius.
No escuro de uma sala cheia, tive a oportunidade de entrar numa outra dimensão: a dimensão do sonho americano, onde a realidade e a ficção se esbatem numa cortina de renda.
O Cinema mudo reinou em Hollywood, que na altura ainda era Hollywoodland, durante aproximadamente três décadas, tendo o seu apogeu na década de 20 e entrando não em declínio mas sofrendo uma morte súbita no início da década de 30 fruto do crash de 29 e de uma necessidade maior que a força humana: a necessidade de evasão.
«O Artista» é sobre este pequeno e pobre resumo de uma parte da História do Cinema, e sobre a queda de um homem que se viu perdido no meio deste turbilhão de acontecimentos, em que os jovens desconhecidos saltaram um degrau tão alto, que lhes permitiu ultrapassar os outros mais experientes.
George Valentim (Jean Dujardin) é um galã do cinema mudo, que protagonizou dezenas de filmes e que, sem querer, conhece Peggy (Berénice Bejo) uma jovem actriz. Valentim inadvertidamente faz dela uma estrela e Peggy brilha no cinema sonoro,tornando-se o símbolo da nova era, a era que George Valentim repudia por orgulho.
A premissa é simples, mas o desenvolver desta obra de arte é extraordinária: costuma ser assim quando o conceito é explorado com amor e dedicação. Mais do que uma história de amor entre duas pessoas, «O Artista» é uma hitória de amor pelo Cinema.
O realizador usa finamente os artifícios que lhe permitem uma narrativa fluida e quase intuitiva.Mais do que saber o que vai acontecer, o que nos prende é como acontece, e como somos transportados para uma época sobre a qual apenas sabemos através dos filmes que já vimos, ou dos quais já ouvimos falar.
São vários os esquemas usados que demonstram o profundo conhecimento pelos filmes desta era, tanto no uso dos planos aproximados enquadrados em objectos como pano de fundo, como os planos partilhados quer seja por casais, quer seja pelo par majestoso da obra -George e o seu cão fiel e amigo - ou até mesmo as cenas em que as personagens se revêem em espelhos.
Tal como Billy Wilder fez em «O crepúsculos dos deuses», Michel Hazanavicius debruça-se sobre a relutância de um actor conceituado em adaptar-se a uma indústria diferente daquela em que perdeu o seu grau de intocabilidade. Todos sabemos que o Homem sempre recusou a mudança, mas não costuma ser um homem qualquer a fazê-lo, normalmente são os mais experientes aqueles que menos preparados estão para as novas eras.
A introdução do som na obra também a torna ainda mais característica, já que a mesma é feita de duas formas, uma onírica, em que «se prepara» o protagonista para o que está para vir, e uma manifestamente real aquando da aprovação da era em questão por parte do público (e não só), revelando-se como uma das cenas mais mágicas a que assisti nos últimos tempos. Essa cena vem mostrar, que um bom filme não precisa de um bom twist para ser apoteótico, basta ser verdadeiro para que nos deixemos render.
Jean Dujardin faz um trabalho notório e digno, e qualquer prémio é mais que merecido, conseguindo uma interpretação única já que apenas o podemos avaliar pela sua expressão e pelo seu encanto natural. Um trabalho esplêndido que já o consagrou e que nos mostra que ser actor, nada tem a ver com palavras, mas sim com o que fica entre elas.
Berenice Bejo também é fantástica no papel de heroína incansável, dotada de uma energia contagiante e uma aura de musa, que nos apaixona principalmente na cena em que se deixa abraçar por um casaco solitário.
É uma verdadeira lição assistir ao «O Artista», a lição de que o Cinema é e sempre foi um mundo paralelo, poderoso pelo fascínio que exerce, e desarmante por nos deixar entrar no mundo do sonho que nos envolve e apaixona, encanta e liberta.
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