Naquela manhã nascida num dia cinzento-água coberto de sombra enovoada havia um quarto, e desse quarto ecoava a ideia de um sono meio profundo, meio sonhado, meio por acordar. As gotículas de água cristalina estariam possivelmente à espreita com os seus olhos fugidios por entre as persianas das janelas fechadas que continham todo um ar quente bafejado de súor, gesto e agressão feita leveza.
A noite era já uma memória, um rasto deixado entre lençóis, um caminho trilhado e um novo por trilhar, um golpe de espada, um toque ao de leve na pele arrepiada, as teclas do piano que iam deixando fugir uma melodia que só duas e duas pessoas conseguiam escutar. Digam-nos para párar, ensinem-nos a esconder, libertem-nos dos nossos medos, façam as nossas asas crescer. Vão embora e deixem-me a mim ficar no para sempre no quarto, no quarto onde os violinos não soam para que uma melodia mais bela possa ser escutada.
Ao acordar, a acção prosseguiu, o momento aprisionado libertou-se e escorreu pelos poros, esvaiu-se entre lençois, um relâmpago mudo abafado por uma mão, um romper da carne contraída, um corropio de imagens, olhos fechados, olhos abertos, vermelho fogo, luz, dois.
Uma lição foi aprendida na manhã nascida do dia cinzento- água, a lição de que o tempo é uma benção e que nenhum dia pode ser desperdiçado, nenhum dia é desprovido de beleza, nenhum momento por mais breve que seja... nenhum momento pode ser dado como trivial, nenhum momento pode jamais ser roubado ao tempo que ecoa de dentro de nós, de um para o outro numa linguagem sem palavras porque as palavras às vezes fogem para os lugares do nosso coração, os lugares sem som, e assim escrevo: Gosto muito de ti, escrevo porque o coração não sabe ler.
1 comentário:
Fantástica: como sempre.
Tó
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